"SECRETARIA DOS ÓRGÃOS DE DELIBERAÇÃO SUPERIOR
Ofício Circular no 33/2008 - SODS-UFMG
Belo Horizonte, 20 de junho de 2008
Prezado(a) Senhor(a),
De ordem do Magnífico Reitor, Professor Ronaldo Tadêu Pena, informo a V.S.a que o Conselho Universitário, na reunião realizada em 19 de junho de 2008, deliberou favoravelmente à utilização dos meios institucionais para veicular à comunidade universitária a manifestação (abaixo) da Vice-Reitora, Professora Heloisa Maria Murgel Starling, na referida sessão, sobre o episódio ocorrido no Instituto de Geociências, em 03 de abril de 2008, e sobre o relatório final emitido pela Comissão de Sindicância instituída com a finalidade de apurar os fatos relacionados à presença da Polícia Militar na referida Unidade, naquela data.
Atenciosamente,
Consuelo Dourado Dupin
Coordenadora da SODS
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Mensagem da vice-reitora:
"O resultado do trabalho apresentado pela Comissão de Sindicância demonstra que a UFMG não se dispensou da tarefa de se auto-interrogar. A Universidade não pode se isentar da tarefa de conhecer, julgar e ensinar criticamente; mas essa tarefa só pode ser cumprida de modo satisfatório se essa mesma Universidade for suficientemente crítica de si mesma. A tarefa de se auto-interrogar é o momento inicial do processo de conhecimento de si e serve de antídoto para o risco de se trocar o exercício da vida política pela militância partidária de qualquer espécie. Em um momento grave da história da UFMG, o trabalho realizado pela Comissão de Sindicância veio comprovar tanto a disposição da instituição de se auto-interrogar, quanto a vitalidade política dos instrumentos internos de gestão, bem como o fato importantíssimo de que esses instrumentos de gestão continuam regidos por um espírito livre, por uma participação ativa dos membros da comunidade e por regras éticas – regras de confiança, de respeito, de tolerância, de responsabilidade.
Os acontecimentos produzidos no Instituto de Geociências no dia 03 de abril configuram um momento grave da vida da UFMG por diversos motivos. Um deles, certamente, fruto da violência produzida pela presença do contingente policial militar no campus – fato escandaloso e inusitado e que apresenta para reflexão da Universidade algumas questões dele decorrentes. Uma delas: o que a violência revela, não por qualquer decisão consciente de suas vítimas ou de seus praticantes, é a existencia de uma determinada cultura política que se sustenta na impossibilidade de se estabelecerem negociações ou consensos mínimos. A violência revela isolamento e impotência. A outra questão: qualquer ato de força mesmo quando adotado por uma autoridade policial ou militar pede uma justificativa para que tenha legitimidade. O que surpreende, sensibiliza e repercute na Universidade a partir do episódio ocorrido no IGC é o fato de que lá, essa autoridade utilizou a violência de forma injustificável e espetacular. A terceira questão: a violência é muda, mas o que ela deflagra é sempre linguagem. O modo como a UFMG deu sentido e ordenamento a essa linguagem é determinante do seu posicionamento como instituição: a UFMG é contra a linguagem do sensacionalismo, do fascínio e da banalização do ato de violência. A UFMG é contra, também, a linguagem daqueles que buscam se apropriar dos acontecimentos do dia 03 de abril no IGC segundo seus interesses particulares ou suas conveniências ideológicas – e que ao divulgar, espetacularizar, sensacionalizar ou banalizar o ato de violência estão, na verdade, induzindo práticas referidas à violência.
O outro motivo que demonstra a gravidade dos acontecimentos produzidos no Instituto de Geociências no dia 03 de abril diz respeito ao uso sistemático da mentira, na UFMG, ainda que cinscunscrito somente a alguns de seus membros. Mentira utilizada como recurso de convencimento (e de autoconvencimento) para atingir toda a comunidade. Durante dois meses as ações dessa reitoria foram alvo de um conjunto de falsificações que não podem passar em branco: a história foi sonegada e fatos que não convém ao argumento foram ocultados; promoveu-se abertamente ou, se necessário de forma dissimulada, o uso de meios para intimidar e desqualificar a divergência, a manifestação daqueles que pensam de modo diferente; acusou-se pelas costas, na escuridão, sem provas e sem tolerar o direito de defesa.
Na UFMG, o uso da mentira tem apresentado alguns traços característicos. Um deles: esse uso não está circunscrito aos acontecimentos produzidos no IGC; sua fórmula é anterior e posterior a esses acontecimentos embora sua maior visibilidade venha da adulteração agressiva do caráter e do papel da reitoria nesse episódio. Um segundo traço: na UFMG, o uso da mentira não tem seguido um padrão moral; seu agente não pode ser definido nem como bom nem como mau – a rigor, ele investe na mentira como máscara, e se empenha nela por conveniência, omissão, ou ideologia. Entender a mentira para além de uma visão estritamente moral – no sentido fraco, ineficaz do termo – significa fazer recair a ênfase na percepção de que se a mentira cresce nos costumes que a reproduzem (costumes aos quais nos habituamos a reagir com naturalidade), não se pode fazer esquecer que tais costumes são políticos. E esse é o terceiro traço: na UFMG, o uso sistemático da mentira tem significado e natureza política. Ele envolve negar, reescrever e alterar fatos para atingir o espaço público da Universidade e suas instituições. É diferente da versão. Uma versão pode ser inexata ou contrastável com outras, mas implica sempre numa negociação com a realidade factual. A mentira, ao contrário, distorce e nega e encoberta cuidadosamente com camadas de falsidade, a integridade do fato.
Penso que a forma política do uso da mentira na UFMG tem sido fruto da simbiose entre dois discursos: um, o muito velho, já quase obsoleto, mas ainda vivo, se alimenta da idealização que seu autor tem de si próprio e é corroído pelo ressentimento, vale dizer, pelo deleite antecipado com uma dor que ele gostaria de ver sentida pelo objeto de seu rancor. O outro discurso, o muito novo, tem a particularidade de não se limitar a interpretar a realidade, mas age também para que a realidade se submeta às suas deduções – a rigor, ele filtra a realidade para seus próprios fins e, por essa razão, esse discurso é sempre sustentado por uma mistura de credulidade (da platéia) e de cinismo (dos iniciados). É bem verdade que, no nosso caso, ao final de dois meses, o mentiroso verá que não conseguiu enganar a Universidade com mentiras que atingem princípios. Essa é uma das lições que podiam ter sido aprendidas das experiências totalitárias e da assustadora confiança dos dirigentes totalitários no poder da mentira.
Mas penso também que é preciso extrair as conseqüências do uso político da mentira sobre os acontecimentos produzidos no IGC – em parte porque a mentira é um risco para o tecido democrático da UFMG; em parte porque a mentira velou deliberadamente o debate sobre questões importantes que emergiram desses acontecimentos. Po exemplo: até o momento, a instituição deixou de debater o tema polêmico da legalização da droga; a instituição ainda não se debruçou atentamente sobre a necessidade de criação de mecanismos normativos de convivência da instituição com as atividades policiais num contexto democrático – um contexto que foi construído, vale lembrar, com a participação obstinada dos membros dessa Universidade e, por isso mesmo, nós, membros dessa Universidade, não podemos aceitar qualquer comparação entre a ditadura militar e a democracia brasileira. A instituição também tem deixado de debater o significado de um slogan que se fez ouvir muitas vezes no campus: “polícia para quem precisa de polícia” – um slogan profundamente reacionário por várias razões: primeiro, porque supõe que a desigualdade brutal da nossa sociedade está de certa maneira naturalizada; segundo, porque não censura o uso da violência policial; ao contrário, aponta-o na direção de um Outro; terceiro, porque julga restrita nossa cidadania já que atos de violência policial podem ser considerados legítimos desde que dirigidos contra “aqueles que precisam de polícia” – a saber: contra os suspeitos e os acusados (justa ou injustamente) da prática de algum crime. Em tempo de arremessar pedras, contra quem mais se dirige esse slogan?
A mentira vela o debate sobre os fatos e corrói, de diversas maneiras, o tecido democrático da UFMG. Senão vejamos: a mentira corrói a confiança que depositamos no Outro, confiança que nos garante a inviolabilidade dos acordos, a disposição de fazer promessas e cumpri-las. Já se disse antes: uma comunidade – de qualquer natureza ou tamanho – sem espaço para a confiança e para a fraternidade, “não merece o nome de cidade, mas antes o de solidão”. A mentira impede o diálogo. Nós, membros da UFMG, sabemos que precisamos dialogar porque somente o diálogo pode resistir à violência ou, pelo menos, ao seu emprego prematuro O diálogo é a tentativa, sempre renovada, de unir e distinguir contrários; ele é o caminho pelo qual o pensamento cria a política num mundo que se pretende razoável e quer, efetivamente, ser razoável. A mentira produz uma forma particular de violência. Não se trata aqui da violência física; o que a mentira pretende é eliminar a história de sua vítima – é uma violência que opera sobre a alma da vítima e não sobre seu corpo. Filha da mentira e característica de um tipo de manifestação perversa que incide sobre o mundo da política, essa é uma das formas mais abjetas de violência. Que tipo de manifestação é essa que acusa, sem provas, por algo que não fizemos? Que julga previamente, desqualifica e enxovalha as idéias, a militância, o comportamento público e dignidade das pessoas? O racismo é uma dessas manifestações; o julgamento sumário é outra dessas manifestações. E eu gostaria de acrescentar: no meu caso pessoal, o momento mais cruel dessa violência foi quanto, por meio da mentira, procurou-se atingir meus orientandos, meus bolsistas de iniciação científica, meus ex-alunos.
Eu acredito que os membros do Conselho Universitário aqui não comparecem somente como detentores de um saber e de um ofício, representantes de uma categoria ou de partes da nossa comunidade. Eu acredito que esse Conselho tem um papel insubstituível porque também é sua tarefa lidar com a ágora, lidar com a tarefa de dar caráter público aos princípios que orientam a vida da instituição. É esse Conselho quem discute quanto valem as coisas, debate o valor das idéias e aproxima os membros da nossa comunidade no sentido de conservarem a consciência de pertencimento a um destino comum – qual seja, a busca e a partilha desinteressada do conhecimento. Eu acredito que o exercício dessa tarefa forma o cidadão da comunidade universitária não para a ética mas na ética – e a ética visa o bem agir, como a política visa o bem viver. Existe um provérbio africano que diz o seguinte: “até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça continuarão glorificando o caçador”. É preciso que a UFMG, quando for relatar e apreciar os fatos e os acontecimentos de sua vida pública, não perca, nunca mais, a paixão pela integridade intelectual a qualquer preço. O nome dessa paixão é a objetividade. Ela nos torna capaz de olhar com olhos iguais o amigo e o adversário; a vitória e a derrota. Sem ela, somos apenas leões abatidos pelos caçadores que perambulam entre nós, caçadores que sabem inventar suas histórias e fazer bom uso delas.
Era o que eu tinha a dizer aos membros do Conselho Universitário da UFMG.
Professora Heloisa Maria Murgel Starling"
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